Wednesday, September 16, 2009

O SAMBA, A BOSSA E OS PAPAGAIOS SURDOS

Sabe-se que os três elementos básicos da música são ritmo, melodia e harmonia.
A harmonia é tão importante que determina a intensidade da música, abre portas para melodias mais arrojadas e demonstra o conhecimento musical do compositor.
Na nossa MPB a maior sofisticação harmônica se deu na Bossa Nova.
A Bossa foi desenvolvida por grandes mestres como Tom Jobim e João Gilberto. Eu disse “desenvolvida”, não criada ou inventada. Outros músicos participaram e deram contribuição a esse movimento.
Antes da Bossa já existia o Samba, que, aliás, foi uma das primeiras e mais autênticas manifestações musicais brasileiras.
O Samba nasceu na Bahia. Os escravos africanos, com a sua cultura, a sua crença, música e costumes, deram um toque muito especial à nossa cultura. Sem falar na incrível influência rítmica da Capoeira, do Candomblé, do Batuque e, por fim, do Samba.
O ritmo africano é o “molho”, o tempero da nossa música.
O estrangeiro tenta sambar, mas não consegue. O músico ‘de fora’ tenta tocar samba, mas este “escapole” dos seus dedos como a areia fina foge entre os dedos da mão. “Não dá pra segurar”, dizem, desconsolados. Música é linguagem. Aprender o samba é como aprender uma nova língua para o gringo. Isso pode demorar a vida inteira. Essa expressão musical é peculiar ao nosso povo. O nosso “molejo” é nato.
No meu disco “Bossa Rural” eu apresento a Bossa com uma conotação rural (Salve Jobim e Gonzagão / A minha Bossa o meu Baião / eh meu sertão eh litoral / Peço licença prá minha Bossa Rural). Nesse mesmo disco, presto uma pequena homenagem ao samba com a musiquinha chamada “Bandeira”: (A nossa bandeira é o samba / Minha gente bamba).
O Samba se expandiu em outras expressões como o Chorinho, o Samba-Canção, Samba-de-Breque, etc. O Samba-Canção é um Samba lento.
O João Gilberto se inspirou no Samba-Canção do Dorival Caymmi e de outros grandes mestres da MPB para chegar até a Bossa Nova.
A grande diferença entre o Samba-Canção e a Bossa Nova está na Harmonia. E na interação rítmica da voz com o violão. A harmonia da nossa Bossa foi influenciada pelo Jazz americano, mas é muito diferente. Tão diferente que passou a influenciar o próprio Jazz. A nossa Bossa Nova hoje faz parte do repertório do Jazzista.
A Bossa é essencialmente brasileira e representa o Brasil onde quer que seja apresentada.
A progressão harmônica apresentada pela Bossa Nova provocou uma grande evolução em toda a nossa música. A MPB usava uma harmonia consonante com acordes de tríade (acordes compostos por 3 notas).
A partir da Bossa, a nossa música passou a ser mais dissonante e começamos a usar um novo colorido sonoro. Os acordes passaram a ter 4, 5, 6 sons diferentes além da tríade. Com harmonias mais complexas como 7M/9, 6/9, 13a etc.
Outra coisa que é muito comum na Bossa é a inversão dos acordes. E com a sofisticação da Harmonia, a Melodia e os arranjos, orquestrações, também se tornaram mais complexos.
A sambista Beth Carvalho, muito inspirada, disse o seguinte a respeito da Bossa: “O Rock é antes e depois de Beatles. A MPB é antes e depois da Bossa Nova”.
Em 1962 Tom Jobim, João Gilberto e um time de primeira linha vieram aos Estados Unidos para apresentar no Carnegie Hall a nossa Bossa Nova. E depois, em 64, Jobim voltou aos Estados Unidos para gravar suas composições na interpretação de Frank Sinatra. Essa foi a única vez que Sinatra gravou um álbum completo com a obra de um único compositor.
O João Gilberto fez parte da orquestração com o seu violão dando todo suporte rítmico e harmônico às belíssimas composições do seu parceiro Jobim. Esse disco ganhou o Grammy, foi um grande sucesso de crítica e público e tornou-se histórico para a nossa MPB e para a música moderna universal.
Há quem diga que a Bossa já morreu ou que a Bossa é algo do passado. Essas pessoas, no entanto, não entendem a evolução da música. Afinal, a Bossa nunca morre. A Bossa foi e é a maior evolução de nossa MPB. A Bossa foi absorvida por toda a nossa música.
Através de livros e principalmente através da internet, tornou-se fácil o acesso à obra de Jobim e de todos os outros Bossanovistas. Por esse motivo, é fácil encontrar algum acorde dissonante, influenciado pela Bossa, em músicas que vão do Samba de Partido Alto até a música sertaneja. Não somente esses compositores bebem da fonte da Bossa. Os compositores clássicos da MPB como Edu Lobo, Dori Caymmi, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano, João Bosco, etc. também foram ou são diretamente influenciados pela Bossa. Toda a nossa MPB é e continuará a ser influenciada pela Bossa.
Mas a Bossa trouxe contradições, quebrou tabus melódicos e harmônicos com sua fineza de estilo.
Conta-se que, no lançamento do primeiro disco do João Gilberto cantando “Desafinado”, um dos maiores clássicos da Bossa, um locutor de rádio em São Paulo quebrou o disco durante o programa dizendo que aquilo não era música. E desde o lançamento pairou no ar o boato entre os “surdos” de que o João seria desritmado: “O João Gilberto canta fora do ritmo”.
Ledo engano. Ali estava o grande mestre da harmonia, que driblava com a voz e violão, como Garrincha driblava os seus adversários no estádio.
O João soava estranho para esses “papagaios” de ouvidos estúpidos, viciados com Rock, Rock Balada, etc. Estes são os “papagaios surdos” (os que vivem repetindo a opinião de outros. Embora tenham ouvido, recusam a escutar.) Como esses papagaios comandam a mídia, eles também ditam as regras do jogo fonográfico.
Outra opinião distorcida que se espalhou entre os “papagaios surdos” é a de que “O João Gilberto é desafinado”.
Acontece que o grande mestre Jobim, como bom carioca, usava de muita mutreta em sua arte. Na música “Desafinado” a única em que ele descreve o movimento dizendo: (Isso é Bossa Nova, isso é muito natural) . Ou seja, ele se dizia desafinado na primeira frase (Se você disser que eu desafino, amor) na letra de Newton Mendonça, para brincar com a opinião dos surdos e, ao mesmo tempo, apresentar uma melodia trilhando por caminhos nunca dantes tocados. Com intervalos harmônicos e melódicos completamente diferentes do que se tinha notícia até aquele momento na MPB. Justamente para driblar o costume de se ouvir melodias monótonas.
Da mesma maneira marota, Jobim brinca com harmonia e melodia fazendo “Samba de Uma Nota Só”, no qual percorre todas as notas da escala. Usa todas as possibilidades na tonalidade maior, modula para a tonalidade menor e fala na letra (Eis aqui esse sambinha feito de uma nota só). Os “papagaios surdos” comentavam entre si: “O Jobim fez um samba e usou somente uma nota”. Eles não prestaram atenção na outra parte da letra que diz: (Tanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada ou quase nada. Já utilizei de toda escala e ao final não deu em nada).
Outro deboche sobre a opinião dos “papagaios surdos” mais recente foi quando o João gravou o samba: “Prá Que Discutir Com Madame”, onde ele canta: (Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém samba / Vivi dizendo que o samba é vexame / Porque discutir com madame...). Ao mesmo tempo em que convida os sambistas para acabar com o samba, ele dá um show de molejo no samba, um verdadeiro olé. Para que a ‘torcida’ brasileira que tem a memória tão fraca não se esqueça do seu Garrincha do samba. A propósito, quem será essa “madame” que quer acabar com o samba, senão os “papagaios surdos”?
João Gilberto e o Tom Jobim formavam uma dupla clássica na nossa MPB. O Jobim com suas melodias e harmonias altamente sofisticadas. Somado a uma letra leve, brasileiríssima, sensível e romântica. O João com sua sofisticação harmônica e rítmica.
Além de gravar quase toda obra do Tom, o João gravou os compositores clássicos como Ari Barroso, Dorival Caymmi, etc. Com uma interpretação impecável, moderna e única em nossa música.
Villa Lobos e Tom Jobim são os dois compositores brasileiros que mais contribuíram para a música universal. E o estudo das suas obras é matéria obrigatória em qualquer conservatório de música que se preze.


ClauduArte Sá





Ouça o poeta, compositor e cantor Clauduarte Sá, clicando no link abaixo: http://www.youtube.com/user/Claudandrade
O PROCESSO CRIATIVO

Cada compositor desenvolve os seus próprios métodos e hábitos de compor.

Uma música pode nascer de inúmeras maneiras. Podemos compor com um instrumento, usando uma seqüência harmônica, através de um ritmo repetido ou começar através de um poema, ou de lembranças, imagens, sons, informações, gravadas no nosso subconsciente. Certa vez, morando em Nanuque (MG), eu estava pedalando uma bicicleta em direção ao rio Mucuri. Quando comecei a cantar: “Ela faz perna, faz braço e sem mostrar cansaço, faz cílios e unhas também...” era o início da musiquinha “Puberdade”, que gravei no CD “Bossa Rural” com a participação de Cida.

A composição pode nascer também como um sonho. Muitas vezes acordei no meio da noite com uma frase musical, como se fosse uma “vozinha” cantando em minha cabeça. Em qualquer lugar em que eu esteja, na medida do possível, tento “obedecer” a essa “vozinha da inspiração”, permitindo que ela comande a composição. Geralmente gravo essa primeira impressão melódica com uma frase ou estrofe sem usar instrumento.

Canto à vontade, sem me preocupar com tonalidade, afinação, harmonia nem com o português correto. Simplesmente vem aquela vontade de cantar algo. Cantar aquela saudade, cantar aquela injustiça, cantar a alegria, a tristeza, etc. Depois de gravar aquela primeira impressão, vou escutá-la e analisá-la.

Do aspecto rítmico

Qual seria a melhor opção rítmica para essa música? Ela soaria melhor como um samba, chorinho, baião, bossa?

Cada ritmo traz em si acentos diferentes que podem acrescentar uma nova motivação ou nova roupagem à música. É como trocar uma roupa corriqueira, do dia-a-dia, por uma roupa nova, bonita, domingueira.


Sobre a melodia

Ela me lembra alguma outra música? No caso de a minha melodia parecer com outra, é melhor eu mudar minha melodia do que outra pessoa me chamar de plagiador ou abrir um processo contra mim. Ao estudar a melodia de minha música, eu tenho a opção, por exemplo, de criar uma melodia com a 1a parte na tonalidade menor e na 2a parte tonalidade maior (ou vice-versa).

Como sabemos, a tonalidade menor na maioria das vezes tem um caráter romântico, sentimental e a tonalidade maior é mais festivo e alegre. Eu tenho algumas musiquinhas em tonalidades menores com os refrões em tonalidades maiores.

Quanto à harmonia

Qual seria a harmonia apropriada para essa música? Como posso melhorar essa harmonia? Como citei no texto “O Samba, A Bossa e os Papagaios Surdos”, uma harmonia dissonante acrescenta novo colorido tonal e sugere um arranjo mais sofisticado. Pela seqüência de notas do meu improviso gravado, eu procuro identificar a escala. Para isso, uso o violão e solo nota por nota e escrevo as notas na partitura.

Com a melodia definida, eu inicio o estudo da harmonia. Se tenho a nota Dó (C), por exemplo, posso usar os acordes de Dó Maior, Dó menor, Lá menor, Fá Maior, Fá menor, Ré Maior com Sétima, Ré menor com Sétima. Nessas opções, estamos usando apenas acordes consonantes. Se formos usar dissonâncias, teremos muito mais opções harmônicas.

Por falar em ritmo e harmonia, fiz um trabalho sobre os “Beatles”. Arranjei 10 de suas músicas com harmonias modernas em ritmos de samba e bossa. Inclusive a música “Help”, um rock acelerado. Eu o arranjei para um samba arrojado, com aquele swing usado pelo João Bosco, que foi muito bem desenvolvido pelo grande mestre do violão no samba, o Baden Power.

A respeito da letra da música

A letra deve expressar o sentimento do compositor. Ela conduzirá o ouvinte sobre o tema da composição. A letra muitas vezes ajuda ou conduz o arranjo da música. Quando o assunto é sobre o campo, sertão, vaqueiro, etc., quase sempre estamos diante de um baião, xote, etc. Quando a letra fala sobre a cidade, vida moderna, tem-se diferente conceito de harmonização, arranjo, etc. Pessoalmente eu gosto muito desses dois assuntos. E tento combinar os dois. Pois a minha origem é campestre e a maior parte de minha vida foi em cidade grande. Daí surgiu a idéia de criar o “Bossa Rural”.

Quando tenho dúvidas a respeito do significado de uma palavra, procuro no dicionário do Aurélio Buarque de Holanda. Já compus a partir da letra. Mas prefiro gravar a minha primeira inspiração do jeito que ela vier. Com letra ou somente instrumental. O importante no momento da inspiração é a gravação. Até porque ela é a melhor forma de registro da inspiração.

Eu tenho consciência de que não há mais nada para se inventar. As escalas foram organizadas desde o período de Johann Sebastian Bach. Isso já faz quase 500 anos. Harmonias muito sofisticadas, inclusive música atonal ou dodecafonismo, o grande compositor Arnold Shcoenberg nos deixou 200 anos atrás. Tantas músicas maravilhosas criadas pelos grandes mestres da música universal viajam de geração em geração. Clássico, Rock, Jazz, Samba, Bossa, Baião... etc. Tudo já fora criado.

Um mestre inspirou e influenciou o outro. Sempre foi assim e assim será. Se analisarmos a música brasileira, perceberemos que Villa Lobos fora influenciado por Bach. Tom Jobim influenciado por Villa Lobos, a MPB influenciada pelo Tom, etc.

Quando eu era criança, assisti ao show de Luiz Gonzaga no Cine Globo de Itanhém e nunca mais me esqueci de sua expressão festiva e brasileira. Cresci escutando aquela música contagiante que sempre fez parte da minha expressão natural. Creio que não existe um único músico do Norte até o Rio que não tenha sido influenciado pelo Gonzagão.
E por todo o Brasil percebemos outros músicos influenciados pelo seu baião. Inclusive o Jobim, Hermeto Pascal, Chico, Dori Caymmi, etc. fizeram muitos baiões. Claro que não é um baião como o do Gonzagão com sanfona, triângulo e zabumba. Não estou falando de imitação, mas, sim, de influência, inspiração.
O baião do Hermeto, por exemplo, é bem moderno, cheio de improvisações em escalas jazísticas.
O baião do Jobim é um baião muito sofisticado e, como todo o seu trabalho, tem uma harmonia e uma melodia muito bem estudadas. Mas a essência, o ritmo, a letra tem muito a ver com o baião do Gonzagão.

Existem pessoas que acreditam que a composição seja algo místico, misterioso, que vem de deuses e por este motivo acreditam que a composição deve continuar como na primeira inspiração, para não contrariar os deuses. Qualquer parte da composição é passível de mudanças. Pode-se alterar o ritmo, a melodia, a harmonia, a letra ou todas essas partes.

Às vezes a inspiração é tamanha que a música nasce completa. Letra, ritmo, melodia e harmonia. Mas através dos anos, exercitando esse hábito, tenho me tornado mais crítico e mais exigente comigo mesmo e toda música que inicio, analiso-a do ponto de vista rítmico, melódico, harmônico e poético.

Todos nós sofremos influências dos que trilharam esse caminho. Daí a importância de se escutar boa música, adquirir informação e, quando compor, devemos expressar a nossa versão com a nossa carga musical. Podemos parafrasear aquele pensamento: “Diga-me o que ouves, que eu te direi o que compões”.

Vale a pena lembrar que não existe erro em arte. O que se leva em conta é o bom gosto, o bom senso e a capacidade criativa ou não do artista.


ClauduArte Sá

Saiba mais sobre Clauduarte Sá, em: www.traquejo.com.br/artistas.php?id=61





Ouça o poeta, compositor e cantor Clauduarte Sá, clicando no link abaixo: http://www.youtube.com/user/Claudandrade