Wednesday, September 16, 2009

O PROCESSO CRIATIVO

Cada compositor desenvolve os seus próprios métodos e hábitos de compor.

Uma música pode nascer de inúmeras maneiras. Podemos compor com um instrumento, usando uma seqüência harmônica, através de um ritmo repetido ou começar através de um poema, ou de lembranças, imagens, sons, informações, gravadas no nosso subconsciente. Certa vez, morando em Nanuque (MG), eu estava pedalando uma bicicleta em direção ao rio Mucuri. Quando comecei a cantar: “Ela faz perna, faz braço e sem mostrar cansaço, faz cílios e unhas também...” era o início da musiquinha “Puberdade”, que gravei no CD “Bossa Rural” com a participação de Cida.

A composição pode nascer também como um sonho. Muitas vezes acordei no meio da noite com uma frase musical, como se fosse uma “vozinha” cantando em minha cabeça. Em qualquer lugar em que eu esteja, na medida do possível, tento “obedecer” a essa “vozinha da inspiração”, permitindo que ela comande a composição. Geralmente gravo essa primeira impressão melódica com uma frase ou estrofe sem usar instrumento.

Canto à vontade, sem me preocupar com tonalidade, afinação, harmonia nem com o português correto. Simplesmente vem aquela vontade de cantar algo. Cantar aquela saudade, cantar aquela injustiça, cantar a alegria, a tristeza, etc. Depois de gravar aquela primeira impressão, vou escutá-la e analisá-la.

Do aspecto rítmico

Qual seria a melhor opção rítmica para essa música? Ela soaria melhor como um samba, chorinho, baião, bossa?

Cada ritmo traz em si acentos diferentes que podem acrescentar uma nova motivação ou nova roupagem à música. É como trocar uma roupa corriqueira, do dia-a-dia, por uma roupa nova, bonita, domingueira.


Sobre a melodia

Ela me lembra alguma outra música? No caso de a minha melodia parecer com outra, é melhor eu mudar minha melodia do que outra pessoa me chamar de plagiador ou abrir um processo contra mim. Ao estudar a melodia de minha música, eu tenho a opção, por exemplo, de criar uma melodia com a 1a parte na tonalidade menor e na 2a parte tonalidade maior (ou vice-versa).

Como sabemos, a tonalidade menor na maioria das vezes tem um caráter romântico, sentimental e a tonalidade maior é mais festivo e alegre. Eu tenho algumas musiquinhas em tonalidades menores com os refrões em tonalidades maiores.

Quanto à harmonia

Qual seria a harmonia apropriada para essa música? Como posso melhorar essa harmonia? Como citei no texto “O Samba, A Bossa e os Papagaios Surdos”, uma harmonia dissonante acrescenta novo colorido tonal e sugere um arranjo mais sofisticado. Pela seqüência de notas do meu improviso gravado, eu procuro identificar a escala. Para isso, uso o violão e solo nota por nota e escrevo as notas na partitura.

Com a melodia definida, eu inicio o estudo da harmonia. Se tenho a nota Dó (C), por exemplo, posso usar os acordes de Dó Maior, Dó menor, Lá menor, Fá Maior, Fá menor, Ré Maior com Sétima, Ré menor com Sétima. Nessas opções, estamos usando apenas acordes consonantes. Se formos usar dissonâncias, teremos muito mais opções harmônicas.

Por falar em ritmo e harmonia, fiz um trabalho sobre os “Beatles”. Arranjei 10 de suas músicas com harmonias modernas em ritmos de samba e bossa. Inclusive a música “Help”, um rock acelerado. Eu o arranjei para um samba arrojado, com aquele swing usado pelo João Bosco, que foi muito bem desenvolvido pelo grande mestre do violão no samba, o Baden Power.

A respeito da letra da música

A letra deve expressar o sentimento do compositor. Ela conduzirá o ouvinte sobre o tema da composição. A letra muitas vezes ajuda ou conduz o arranjo da música. Quando o assunto é sobre o campo, sertão, vaqueiro, etc., quase sempre estamos diante de um baião, xote, etc. Quando a letra fala sobre a cidade, vida moderna, tem-se diferente conceito de harmonização, arranjo, etc. Pessoalmente eu gosto muito desses dois assuntos. E tento combinar os dois. Pois a minha origem é campestre e a maior parte de minha vida foi em cidade grande. Daí surgiu a idéia de criar o “Bossa Rural”.

Quando tenho dúvidas a respeito do significado de uma palavra, procuro no dicionário do Aurélio Buarque de Holanda. Já compus a partir da letra. Mas prefiro gravar a minha primeira inspiração do jeito que ela vier. Com letra ou somente instrumental. O importante no momento da inspiração é a gravação. Até porque ela é a melhor forma de registro da inspiração.

Eu tenho consciência de que não há mais nada para se inventar. As escalas foram organizadas desde o período de Johann Sebastian Bach. Isso já faz quase 500 anos. Harmonias muito sofisticadas, inclusive música atonal ou dodecafonismo, o grande compositor Arnold Shcoenberg nos deixou 200 anos atrás. Tantas músicas maravilhosas criadas pelos grandes mestres da música universal viajam de geração em geração. Clássico, Rock, Jazz, Samba, Bossa, Baião... etc. Tudo já fora criado.

Um mestre inspirou e influenciou o outro. Sempre foi assim e assim será. Se analisarmos a música brasileira, perceberemos que Villa Lobos fora influenciado por Bach. Tom Jobim influenciado por Villa Lobos, a MPB influenciada pelo Tom, etc.

Quando eu era criança, assisti ao show de Luiz Gonzaga no Cine Globo de Itanhém e nunca mais me esqueci de sua expressão festiva e brasileira. Cresci escutando aquela música contagiante que sempre fez parte da minha expressão natural. Creio que não existe um único músico do Norte até o Rio que não tenha sido influenciado pelo Gonzagão.
E por todo o Brasil percebemos outros músicos influenciados pelo seu baião. Inclusive o Jobim, Hermeto Pascal, Chico, Dori Caymmi, etc. fizeram muitos baiões. Claro que não é um baião como o do Gonzagão com sanfona, triângulo e zabumba. Não estou falando de imitação, mas, sim, de influência, inspiração.
O baião do Hermeto, por exemplo, é bem moderno, cheio de improvisações em escalas jazísticas.
O baião do Jobim é um baião muito sofisticado e, como todo o seu trabalho, tem uma harmonia e uma melodia muito bem estudadas. Mas a essência, o ritmo, a letra tem muito a ver com o baião do Gonzagão.

Existem pessoas que acreditam que a composição seja algo místico, misterioso, que vem de deuses e por este motivo acreditam que a composição deve continuar como na primeira inspiração, para não contrariar os deuses. Qualquer parte da composição é passível de mudanças. Pode-se alterar o ritmo, a melodia, a harmonia, a letra ou todas essas partes.

Às vezes a inspiração é tamanha que a música nasce completa. Letra, ritmo, melodia e harmonia. Mas através dos anos, exercitando esse hábito, tenho me tornado mais crítico e mais exigente comigo mesmo e toda música que inicio, analiso-a do ponto de vista rítmico, melódico, harmônico e poético.

Todos nós sofremos influências dos que trilharam esse caminho. Daí a importância de se escutar boa música, adquirir informação e, quando compor, devemos expressar a nossa versão com a nossa carga musical. Podemos parafrasear aquele pensamento: “Diga-me o que ouves, que eu te direi o que compões”.

Vale a pena lembrar que não existe erro em arte. O que se leva em conta é o bom gosto, o bom senso e a capacidade criativa ou não do artista.


ClauduArte Sá

Saiba mais sobre Clauduarte Sá, em: www.traquejo.com.br/artistas.php?id=61





Ouça o poeta, compositor e cantor Clauduarte Sá, clicando no link abaixo: http://www.youtube.com/user/Claudandrade

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